Sei que para alguns (poucos) dos meus amigos, um texto deste tamanho, publicado num blogue, é "areia a mais para a sua camioneta". Ainda por cima sem imagens. É um pouco como se lhes pedisse que lessem o "Crime e Castigo" de Dostoievski, ou mesmo um dos últimos romances de Lobo Antunes, que é também o autor da crónica que resolvi partilhar convosco, hoje.
Porém, vão por mim, e acreditem que vale a pena: no meio da sua "loucura criativa", e ilegível para muita gente, ele tem, de vez em quando, a lucidez do cidadão comum. E este texto, publicado na revista "Visão", está muito perto de uma obra-prima, no género sarcástico.
"Perguntam-me muitas vezes por que motivo nunca falo do governo nestas
crónicas e a pergunta surpreende-me sempre. Qual governo? É que não
existe governo nenhum. Existe um bando de meninos, a quem os pais
vestiram casaco como para um baptizado ou um casamento. Claro que as
crianças lhes acrescentaram um pin na lapela, porque é giro
- Eh pá embora usar um pin?
que representa a bandeira nacional como podia representar o Rato Mickey
- Embora pôr o Rato Mickey?
mas um deles lembrou-se do Senhor Scolari que convenceu os portugueses a encherem tudo de bandeiras, sugeriu
- Mete-se antes a bandeira como o Obama
e, por estarem a brincar às pessoas crescidas e as play-stations
virem da América, resolveram-se pela bandeirinha e aí andam, todos
contentes, que engraçado, a mandarem na gente
- Agora mandamos em vocês durante quatro anos, está bem?
depois de prometerem que, no fim dos quatro anos, comem a sopa toda e
estudam um bocadinho em lugar de verem os Simpsons. No meio dos meninos
há um tio idoso, manifestamente diminuído, que as famílias dos meninos
pediram que levassem com eles, a fim de não passar o tempo a maçar as
pessoas nos bancos, de modo que o tio idoso, também de pin
- Ponha que é curtido, tio
para ali anda a fazer patetices e a dizer asneiras acerca de Angola,
que os meninos acham divertidas e os adultos, os tontos, idiotas. Que
mal faz? Isto é tudo a fazer de conta.
Esta criançada é curiosa. Ensinaram-me que as pessoas não devem ser
criticadas pelos nomes ou pelo aspecto físico mas os meninos exageram, e
eu não sei se os nomes que usam são verdadeiros: existe um Aguiar
Branco e um Poiares Maduro. Porque não juntar-lhes um Colares Tinto ou
um Mateus Rosé? É que tenho a impressão de estar num jogo de índios e
menos vinho não lhes fazia mal. No lugar deles arranjava outros
pseudónimos: Touro Sentado, Nuvem Vermelha, Cavalo Louco. Também é giro,
também é americano, pá, e, sinceramente, tanto álcool no jardim escola
preocupa-me. A ASAE devia andar de olho na venda de espirituosas a
menores. Outra coisa que me preocupa é a ignorância da língua portuguesa
nos colégios. Desconhecem o significado de palavras como irrevogável.
Irrevogável até compreendo, uma coisa torcida, e a gente conhece o amor
dos pequerruchos pelos termos difíceis, coitadinhos, não têm culpa, mas
quando, na Assembleia, um deles declarou
- Não pretendo esconder nem ocultar
apesar da palermice me enternecer alarmou-me um nadita, mau grado
compreender que o termo sinónimo seja complicado para alminhas tão
tenras. Espíritos tortuosos ou manifestamente mal formados insinuam, por
pura maldade, que os garotos mentem muito, o que é injusto e cruel.
Eles, por inevitável ingenuidade, não mentem nem faltam às promessas que
fazem: temos de levar em conta a idade e o facto da estrutura mental
não estar ainda formada, e entender que mudar constantemente de
discurso, desdizer-se, aldrabar, não possui, na infância, um significado
grave. A irrealidade faz parte dos cérebros em evolução e, com o tempo,
hão-de tornar-se pessoas responsáveis: não podemos exigir-lhes que o
sejam já, é necessário ser tolerante com os pequerruchos, afagá-los,
perdoar-lhes. Merecem carinho, não crítica, uma festa na cabecinha do
garoto que faz de primeiro-ministro, outra na menina que eles escolheram
para as Finanças e por aí fora. Não é com dureza desnecessária e
espírito exageradamente rígido que os educamos. No fundo limitam-se a
obedecer a uns senhores estrangeiros, no fundo, tão amorosos, que mal
fazem eles para além de empobrecerem a gente, tirarem-nos o emprego,
estrangularem-nos, desrespeitarem-nos, trazerem-nos fominha,
destruírem-nos? São miúdos queridos, cheios de boa vontade, qual o
motivo de os não deixarmos estragar tudo à martelada? Somos demasiado
severos com a infância, enervam-nos os impetuosos que correm no meio das
mesas dos restaurantes, aos gritos, achamos que incomodam os clientes, a
nossa impaciência é deslocada. Por trás deles há pessoas crescidas a
orientarem-nos, a quem tentam agradar como podem à custa daqueles que
não podem. Os portugueses, e é com mágoa que escrevo isto, têm sido
injustos com a infância. Deixem-nos estragar, deixem-nos multiplicar
argoladas, deixem-nos não falar verdade: faz parte da aprendizagem das
mulheres e homens de amanhã. Sigam o exemplo do Senhor Presidente da
República que paternalmente os protege, não do senhor Ex-Presidente da
República, Mário Soares, que de forma tão violenta os ataca e, se vos
sobrar algum dinheiro, carreguem-lhes os telemóveis para eles falarem
uns com os outros acerca da melhor forma de nos deixarem de tanga. Qual o
problema se há tanto sol neste País, mesmo que não esteja lá muito
certo de o não haverem oferecido aos alemães? E, de pin no casaco que
nos fanaram, isto é, de pin cravado na pele
(ao princípio dói um bocadinho, a seguir passa)
encorajemos estes minúsculos heróis com um beijinho"
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